Doping cognitivo: a busca perigosa pelo aperfeiçoamento mental

O uso de substâncias para melhorar a performance cerebral está em alta, mas os riscos podem superar os benefícios. Explore as complexidades éticas e os perigos de uma prática crescente entre estudantes e profissionais, que desafia os limites da medicina e da moralidade.


Por Gabriela Nuernberg, PhD em Psiquiatria.
08/08/2024

A pressão por desempenho: em um mundo cada vez mais acelerado, muitos recorrem ao doping cognitivo na busca de aprimoramento mental, enfrentando riscos e dilemas éticos.

Está muito em alta a procura por suplementos, medicamentos e técnicas, principalmente por estudantes e executivos. Aprimoramento Farmacológico Cognitivo (AFC) é o termo técnico que define o uso de substâncias psicoativas (principalmente os estimulantes) por pessoas saudáveis com o propósito de melhorar o desempenho cerebral. Neste caso, pessoas sem qualquer diagnóstico médico utilizam estas substâncias que na medicina tradicional seriam utilizadas somente em pessoas que apresentem um transtorno psiquiátrico.

Os efeitos desejados com o uso destas medicações são

  • melhora da memória/retenção de informações,
  • Aumento do grau de alerta,
  • Melhora da atenção (ou seja, da capacidade de foco em determinado assunto ou atividade),
  • Velocidade de raciocínio
  • Facilidade para tomada de decisões

Doping cognitivo refere-se particularmente ao uso feito para fins competitivos. Estudantes que utilizam estimulantes para melhorar a atenção, memória, criatividade ou aprendizagem poderiam se enquadrar nessa categoria quando visam superar seus colegas. O doping cognitivo é semelhante ao doping praticado por atletas, mas o primeiro potencializa principalmente a performance cognitiva e o segundo, a performance física.

O dilema ético do doping cognitivo: enquanto a pressão por desempenho aumenta, a linha entre necessidade e competição se torna cada vez mais tênue.

Além de estudantes, cada vez mais concurseiros e profissionais ao redor do mundo fazem uso de substâncias estimulantes, o que nos levanta a questão: o uso de drogas para a melhora da cognição é aceitável eticamente na ausência de doenças? Não há uma resposta definitiva. Pensando em argumentos para o sim e para o não, podemos levantar algumas ideias. Por um lado, há uma crescente pressão social pela desestigmatização do uso de estimulantes; por outro argumenta-se que esse uso pode ser injusto quando há competição. Nosso modelo de sociedade focado na eficiência e produtividade pressiona os estudantes e os trabalhadores a altos níveis de competitividade, o que os faz ignorar os riscos associados ao uso ou não ponderar outras possibilidades, como a prática de exercícios físicos ou o uso de melhores métodos de estudo.

No Brasil não há uma legislação específica sobre o uso de medicamentos para melhora cognitiva, embora alguns estimulantes, como o metilfenidato (princípio ativo da Ritalina), sejam comercializados apenas com receita médica. A princípio, os médicos não estão legalmente proibidos de realizar AFC, mas tendem a estar moralmente impedidos de realizar doping cognitivo. Realizar ou não AFC é uma discussão que adentra uma questão ética da medicina: apenas curar/prevenir ou também melhorar e expandir nossas capacidades? Na primeira opção consideramos a medicina como um campo de tratamento, cura e prevenção de doenças. Já na medicina cosmética busca-se expandir habilidades/qualidades e permitir que os próprios indivíduos decidam que riscos querem correr, inclusive o de usarem psicofármacos com fins de expansão das suas capacidades. Pegando como exemplo a cirurgia plástica, poderíamos questionar se é justo alguém participar de um concurso de beleza tendo feito uma cirurgia facial. A solução vai além da pesquisa empírica e não pode ser cientificamente resolvida, por ser também uma questão ética e moral.

Pesquisas sobre AFC podem nos informar dos riscos e benefícios associados, permitindo que profissionais de saúde e pacientes tomem decisões informadas. As autoridades também podem estabelecer regulamentos e diretrizes baseadas em evidências que orientem profissionais e a população de como agir.

Prevalência e evidência de eficácia

A prevalência de doping cognitivo varia conforme o país, a população específica estudada (ex.: estudantes universitários) e a definição utilizada. Entre estudantes há prevalência entre 1,3% e 33% (1). As principais substâncias utilizadas para doping podem ser divididas em três categorias:

  1. de venda livre – café, energéticos, álcool e cigarro: utilizados para se manter acordado ou otimizar a concentração.
  2. medicamentos prescritos – estimulantes, tais como o metilfenidato ou a lisdexanfetamina (Ritalina, Concerta e Venvanse) que são medicamentos do grupo das anfetaminas, utilizados para o tratamento do Transtorno do Déficit de Atenção/Hiperatividade: para aumentar a performance de aprendizado, concentração e memória.
  3. substâncias psicoativas ilegais – anfetaminas ilegais (“rebites”), muito utilizados para aumentar a atenção entre caminhoneiros.
O doping cognitivo abrange desde cafeína até estimulantes prescritos e ilegais, com prevalência variando amplamente entre estudantes.

Todas as principais drogas são eficazes em indivíduos saudáveis, mas em nível de efeito baixo a moderado (3,4). O aumento na motivação e energia também podem melhorar a performance cognitiva. Contudo, sabe-se que a melhora encontrada em certas áreas da cognição pode estar associada a uma degradação de outras (3,4), por exemplo, ao aumentar a memória imediata pode-se ter uma queda na performance da aprendizagem.

Todas as principais drogas são eficazes em indivíduos saudáveis, mas em nível de efeito baixo a moderado (3,4). O aumento na motivação e energia também podem melhorar a performance cognitiva. Contudo, sabe-se que a melhora encontrada em certas áreas da cognição pode estar associada a uma degradação de outras (3,4), por exemplo, ao aumentar a memória imediata pode-se ter uma queda na performance da aprendizagem.

Riscos e contraindicações

Algumas situações predizem risco aumentado de uso nocivo ou do desenvolvimento de transtorno por uso de substâncias (que anteriormente em termos técnicos chamávamos de abuso ou dependência química) com o uso de estimulantes no AFC:

  • quem está em tratamento de transtorno mental;
  • faz uso contínuo de álcool e outras drogas;
  • pessoas “estressadas”;
  • quem tem doenças clínicas ou tem fatores de risco cardiológicos (tabagismo, obesidade, diabetes, sedentarismo, hipercolesterolemia, etc.)

Os riscos variam de acordo com cada medicamento utilizado, assim como os efeitos adversos. O uso de estimulantes está associado a riscos cardiológicos e psiquiátricos (psicose, abuso e dependência química); o uso de modafinil, que é utilizado no tratamento da narcolepsia e da apneia do sono, tem riscos dermatológicos associados; a atomoxetina apresenta risco de dano hepático... Ainda, alguns dos efeitos adversos destas medicações podem ser irritabilidade, distúrbios de sono, dor de cabeça, perda de apetite, taquicardia e labilidade de humor ou também humor deprimido. Como comentado acima, há a chance de desenvolver dependência ou um uso abusivo com os estimulantes (3). Não existem pesquisas investigando o uso prolongado de AFC em populações saudáveis. Estudos sobre riscos e efetividade também são escassos.

Recomendações

  • Acho bem interessante encorajar a pessoa a refletir sobre seu modo de vida e sobre a sociedade enquanto construtora dessa demanda.
  • Profissionais de saúde devem discutir amplamente os riscos envolvidos e acompanhar o paciente caso este insista em fazer uso.
  • Pode-se sugerir alternativas não-farmacológicas ou encaminhar o paciente para serviços que o ajudem a lidar com o estresse e a pressão por performance.
  • Novos estudos devem ser feitos e novas regulamentações devem ser desenvolvidas, para decidir que forma de aprimoramento cognitivo é aceitável, em que condições, e para que subgrupos.
Reflexão e acompanhamento médico são essenciais para evitar os riscos do doping cognitivo e explorar alternativas mais seguras.

Essa prática tem riscos e benefícios, e atualmente os riscos parecem maiores do que os benefícios para a maioria da população. O uso de medicamentos controlados sem acompanhamento por profissionais de saúde pode gerar complicações médicas e até mesmo levar à dependência (2). Portanto, se você pensa em fazer uso, procure um profissional de saúde, mantenha-se informado e considere possibilidades alternativas para abordar o problema. Não cabe ao psiquiatra julgar, mas sim entender e ajudar o paciente, abordando o problema de uma maneira individualizada.

Referência:

  1. Marcelo Victor, PhD. Psiquiatra, Pesquisador do ambulatório de Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade em adultos do HCPA, Porto Alegre. Disponível em: <https://www.ufrgs.br/saudemental/? page_id=917#:~:textDoping-cognitivo-refere- Dse-particularmente,quando-visam-superar -seus-colegas.>.
  2. SETIC-UFSC. Final de semestre, excesso de atividades e tensão: saiba o que é o doping cognitivo. Disponível em: <https://noticias.ufsc.br/2022/12/final-de-semestre-excesso-de-atividades-e-tensao-saiba-o-que-e-o-doping-cognitivo/>.
  3. Carton, L., Cabé, N., Ménard, O, et al. (2018). Pharmaceutical cognitive doping in students: A chimeric way to get-a-head? Thérapie, 73(4), 331-339.
  4. Sahakian, B. J. & Morein-Zamir, S. (2015). Pharmacological cognitive enhancement: treatment of neuropsychiatric disorders and lifestyle use by healthy people. Lancet Psychiatry, 2(4), 357–362. >.

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